Dica de livro: “O Caçador de Andróides”, de Philip K. Dick


(Resenha escrita por Marcello Simão Branco)

Esperei 15 anos para ler o romance “O Caçador de Andróides”, de Philip K. Dick. Não sei bem explicar porque levei tanto tempo, mas é possível que uma das razões seja o forte impacto que o filme me causou, na primeira e nas várias vezes posteriores que o vi. Talvez tivesse para mim mesmo que um filme tão bom, dificilmente poderia ser pior que o livro que o inspirou.
O fato é que este receio (se é que ele realmente existiu) é uma bobagem. Livro e filme são, cada um à sua maneira, muito bem realizados. Em termos de conteúdo por si, o livro é mais interessante, pois elabora mais algumas questões levemente tratadas no filme como, por exemplo, a razão do estado super populoso da Terra e o êxodo para as colônias em planetas do Sistema Solar. Uma guerra mundial ocorreu e espalhou uma poeira radiativa que a muitos matou, além da grande maioria dos animais. Estes, no romance, se tornaram objetos de culto quase religioso e símbolo de status social para quem possui um em casa. (A ponto das pessoas terem animais elétricos, se não podem comprar um biológico. Deckard, inclusive, é um deles, possuindo uma ovelha elétrica. Daí o título original: Do Androids Dream of Electric Sheep?).
Ao contrário do filme, no livro Deckard é um sujeito bastante inseguro, casado e é humano. Ele tem também uma verve de humor, que é uma característica dos personagens dickianos, como que rindo das próprias limitações e contradições enquanto ser humano.
Há também a questão da religião concebida depois da guerra, o tal do mercerismo, que procura estabelecer uma comunhão psicológica e virtual com aqueles que a aderem. Talvez um indício de suprema insanidade em uma sociedade que perdeu os freios morais e a identidade.
A tal caçada aos andróides Nexus-6 se dá - assim como o próprio romance - em pouco mais de um dia. Um dia na vida de Rick Deckard. Um longo dia que quase o leva à autodestruição.
Philip K. Dick, ao escrever este romance em meados dos anos 60, cria uma obra muito complexa, mas sem o 'peso' excessivamente autobiográfico e paranóico visto em algumas obras já dos anos 70. Há um certo frescor, de exposição de um talento em estado bruto, principalmente do ponto de vista formal. Isso porque a obra ainda se permite um certo desleixo no tratamento da prosa e de algumas cenas que poderiam ser mais caprichadas. Como por exemplo, o duelo final com os últimos andróides sobreviventes. Bom, mas o filme meio que corrige isso, não? Numa das cenas mais tocantes e inesquecíveis da história do cinema.
Mesmo o envolvimento de Deckard com uma andróide se dá num contexto estranho e diferente do livro. O adultério custa caro a ele. E a personalidade de Rachel nada tem da ingenuidade presente no filme de Ridley Scott. Em resumo, é um romance cheio de significados e sub-textos, bem ao feitio da obra de Dick e mesmo este estado de incompletude de uma obra que poderia ser melhor trabalhada, confere um brilho, uma riqueza aos olhos do leitor e o deixa mais aberto para suas próprias interpretações.
Se, por acaso, você, assim como eu fazia, tem evitado o romance por uma espécie de culto ao filme, sugiro que arrisque e leia a história. A própria visão do filme - em conjunto com a criação literária - só torna uma e outra forma de expressão artística mais interessante e complementar.