Conto de horror: “Jornada do Pavor” (1993)


JORNADA DO PAVOR 
por RR


Ilustração por Roberto Schima (1993)

                “Onde será que estou? Que lugar será esse? Sinto-me perdido nessa imensidão de um escuro infinito. O ar está infectado por um nauseante cheiro de putrefação, que parece corroer meu cérebro. Não vejo onde piso, mas sinto que o solo sob meus pés é úmido e pegajoso. Ouço um estranho ruído ao caminhar que me dá a impressão de estar pisoteando ossos e vísceras. Será um pesadelo? Uma alucinação? Não posso me desesperar. Tenho que manter o controle de minhas emoções, apesar do odor fétido queimar minhas narinas e tentar me tirar a consciência”.

                “Continuo caminhando e agora imagens começam a surgir à minha frente. Posso ver um aglomerado de corpos humanos, alguns em adiantado estado de decomposição, outros abundantemente ensangüentados e ainda outros pendurados invertidos em grandes ganchos como se fossem animais abatidos e prontos para serem desmembrados. Muitos dos cadáveres estão violentamente mutilados e outros apresentam ferimentos diversos como se provocados por horríveis torturas. Posso ouvir o barulho característico proveniente do impacto de ferramentas cortantes em pedaços de carne, seguido por gritos intermináveis e agonizantes Uma cruel carnificina celebrando a dor. Um verdadeiro matadouro humano. Sinto-me como se estivesse hipnotizado com essas imagens escatológicas se fixando em minha mente e tentando me enlouquecer. Que lugar infernal será esse? Um universo paralelo que mantém a dor e o sofrimento eternos?”

                “Apesar do horror à minha volta, eu prossigo a caminhada tentando manter a calma e mais imagens começam a aparecer. Vejo homens lutando entre si e posso ouvir explosões ensurdecedoras e armamentos em disparos contínuos. Chamas, destroços, sangue e pedaços de órgãos humanos espalhados por todos os lados, e dor, muita dor. É a guerra, cuja lei vigente é matar para não morrer e onde a única vencedora é a Morte, soberana e insuperável. Posso avistar agora cidades inteiras sendo aniquiladas em poucos segundos, com suas populações sendo incineradas vivas. É o holocausto nuclear. Um genocídio irreversível. A destruição total!”

                “Será tudo isso um pesadelo de sangue, real apenas em meu subconsciente? Ou será uma viagem aos confins da loucura explorando a dor humana? O tormento das macabras imagens tenta explodir-me a cabeça, mas com muita dificuldade eu consigo manter a sanidade e prossigo a jornada rumo ao infinito, tentando encontrar uma saída do inferno em que me encontro. As imagens cessam e não retornam mais, ficando apenas a escuridão ao meu redor. Porém, avisto agora uma espécie de criatura de aspecto sinistro não muito distante de mim. À medida em que me aproximo dela, suas feições se sobressaem na escuridão tornando-se mais nítidas. O misterioso ser aparenta estar vestido com uma capa escura que o envolve até a cabeça, e luzes fracas o iluminam precariamente. Em uma das mãos está segurando um grande objeto pontiagudo, semelhante a uma foice. Continuo me aproximando até poder visualizá-lo bem e meu espanto é indescritível ao reconhecer a criatura como sendo um esqueleto humano! A própria imagem da Morte! O desespero então se apossa de mim, não sendo mais possível o controle das emoções. Meus gritos de agonia ecoam de maneira ensurdecedora através das trevas abissais e...”

                Acordo de repente, todo suado e com o corpo dolorido e cansado. Apesar de meus constantes questionamentos, é novamente mais um pesadelo de horror invadindo minha noite e importunando meu descanso. Imagens macabras celebrando a dor e povoando meus sonhos. Meu batimento cardíaco está acelerado, a respiração ofegante e os olhos vidrados na escuridão do quarto.
                Alguns minutos se passam e aos poucos me recomponho da insana viagem que realizei. Minha visão vai se acostumando ao escuro e me levanto sentando na borda da cama. O corpo dói e as roupas coladas devido ao suor dificultam meus movimentos. Apanho meus óculos na cabeceira da cama e olho para o rádio-relógio à minha frente. Não me surpreendo ao ver os displays vermelhos mostrarem três horas e trinta e três minutos. É sempre na mesma hora. A hora marcada para a jornada do pavor. Foi assim que batizei essa tortuosa experiência que vivencio em vários pesadelos seguidos. Sempre as mesmas imagens, a celebração da dor humana, o encontro da vida com o seu fim e a escuridão eterna reinando morbidamente.
                Levanto-me e vou até a cozinha beber um pouco de água gelada, na esperança de me reanimar novamente. A noite ainda está na metade e não é mais possível dormir. Como nas vezes anteriores, e não me lembro ao certo quantas foram, aguardarei o amanhecer do dia para trabalhar e tentar esquecer os horrores da noite mal dormida.
                O dia passa rápido e a noite novamente se aproxima. E com ela vem o desespero de enfrentar outra viagem pelos caminhos do macabro. Dormir tornou-se uma atividade dolorosa e sufocante. Eu era escravo de meus pesadelos e senti que minha vida estava se esvaindo cada vez que meus olhos se fechavam para... sonhar.
                Cansado e com o corpo dolorido, caminho em direção ao quarto como se fosse entrar numa cripta. Minha saúde estava terrivelmente abalada devido às inúmeras noites de tortura. Aproximo-me vagarosamente da cama e me sinto como se deitasse numa sepultura gelada. Minha resistência em vão cede perante o forte cansaço que me força a fechar os olhos vermelhos e lacrimejantes. Sinto como se fossem abertos os portais de um cemitério.
                Tem início novamente a jornada do pavor.
                As imagens sangrentas começam a surgir e sinto minha energia vital sendo consumida pelo horror escatológico que me envolve. A viagem prossegue parecendo eterna e com ela a intensa batalha entre a razão e a insanidade. Quando surge a criatura vestida com a capa e com a foice em uma das mãos, eu interrompo a caminhada, já quase sem forças. Estou fraco e com o corpo extremamente dolorido. Parado ali, diante do sinistro esqueleto humano, sinto como se as viagens de sofrimento tivessem chegado ao seu fim, aliviando o martírio de uma vida atormentada pela dor.
                A criatura representante da morte levanta então seu braço direito erguendo a grande foice e vocifera com uma voz gutural que ecoa grotescamente na escuridão infinita:
                - Sua jornada chegou ao fim... e não tem volta!
                Os pesadelos acabaram... para sempre!

Obs.: Conto escrito em 1993 e publicado originalmente nos fanzines "Megalon" 28 (1993), "Astaroth" 18 (1998) e "Juvenatrix" 168 (2015).