Confira uma resenha de Marcello Simão Branco sobre o livro “A Canção de Kali”, de Dan Simmons


O panteão hindú tem uma certa recorrência no fantástico anglo-americano. Basta lembrar do clássico “O Senhor da Luz”, de Zelazny e de “Encontro com Rama”, de Clarke, como os exemplos mais conhecidos. Isso sem falar no recente e incensado “River of Gods”, do Ian McDonald. Mas estes são romances de ficção científica. No horror acabo de ler o impressionante romance de Dan Simmons, “A Canção de Kali”.
Há tempos não ficava tão tocado por uma história, pelo grau de envolvimento emocional que ela desperta. Kali é a deusa da destruição ou da morte. Um escritor americano é convidado a ir até Calcutá para receber um misterioso manuscrito que teria sido escrito recentemente por um poeta dado como morto há vários anos. Ele comete a imprudência de levar sua mulher e sua filha de poucos meses de vida. O escritor toma contato com uma seita sinistra que realiza sacrifícios humanos e que tem interesse que o manuscrito, que é um longo poema que glorifica Kali, seja publicado nos EUA. Ele, assim como sua família são enredados por uma série de acontecimentos, tornando-se claro que, na verdade ele é um instrumento usado pelo cultuadores da deusa, assim como outras pessoas também interessadas no manuscrito na Índia.
A descrição que Simmons faz de Calcutá é extremamente realista. Dá a nítida impressão de que estamos percorrendo as ruas desta cidade gigantesca, caótica e de extrema miséria. Não preciso ressaltar que as coisas terminam muito, muito mal. Mesmo que no fim o autor opte por uma saída com mais esperança no destino dos personagens principais, a força dos acontecimentos vividos por eles em Cálcuta é uma ferida que ficará sempre aberta. E que, creio, ainda ressoará bastante na memória de quem lê este livro, verdadeiramente forte, em termos de sua narrativa realista e criativa e dos efeitos de contraste cultural e impacto psicológico que provoca. De certa forma, Simmons tem uma prosa e um estilo semelhante ao de Stephen King, com uma competência narrativa que torna difícil largar a leitura, além de caracterizar muito bem seus personagens e ser um autor que também provoca dor no leitor, por meio do sofrimento dos personagens.
Chama a atenção também as pontas soltas que o autor propositadamente deixa na trama. A intenção é esta mesmo: a Índia, sua religião principal, a cultura do povo e seu panteão é por si mesmo de compreensão difícil para o Ocidente, praticamente um ramo fantástico para o nosso raciocínio iluminista e cartesiano. E Simmons, inteligentemente ressalta isto na figura da esposa do escritor americano, uma filha de indianos e professora de matemática...
O livro é de 1985, venceu o “World Fantasy Award” (o principal prêmio internacional para a fantasia e o horror) e só ganhou uma boa tradução de João Barreiros em 2005, por meio da editora portuguesa “Saída de Emergência”. Um livraço que merece ser conhecido aqui no Brasil também.
(texto por Marcello Simão Branco)